terça-feira, 23 de outubro de 2007

O Almanaque aprecia a arte efémera. Por isso aqui encerra, agradecendo, a II série

O jardim




Havia uma magnólia no jardim,
mas isso não sabíamos ainda.
Era apenas a árvore grande ao centro,
com misteriosas flores brancas,
é certo, por entre as folhas.
Pousava, na sombra, a ideia de um esquilo
(mas não havia esquilos no jardim,
só nas páginas do livro aberto
na mesa de pedra). Não sabíamos ainda
nenhum nome, excepto, talvez,
o dos pinheiros.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

No quintal,

as couves aguardam em silêncio a
próxima transmigração em caldo verde.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Regresso


................... (Carlos Botelho)

No próximo ano iremos à Rondónia,
tomar banho no rio Guaporé.
Ou pode ser que embarquemos em Morobe,
com destino às Ilhas Salomão.
De momento, é só Setembro e navegamos
brandamente
de jangada,
imaginando, sem razão plausível
conhecida, como será
o pôr-do-sol em Chokwé (Mz)

Hipóteses alternativas:
Ulan Batar (Mongólia),
Bairiki (Polinésia)
Fan Xi Pang (Vietname)
etc.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

O voo do falcão




Cantiga das bordadeiras:

A caça de amor
é de altanaria
trabalhos de dia
e de noite dor.
Falcão caçador
com garça tão fera
perigos espera.

(Comédia de Rubena, de Gil Vicente; em castelhano, no original)

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Transparência




O pequeno diabo empoleirado
no canto da mesa toca a flauta
conhecida do deus Pã. O seu riso
tutelar enche de música
a noite de Lisboa. E nada mais.

(Kokopelli, Arizona)

domingo, 8 de julho de 2007

Pequeno poema em forma de porta



À entrada descalçamos os sapatos
e esperamos
que o silêncio, como nuvem,
se acomode.

Esperaremos por um momento, só.

Do outro lado começa o verão.

terça-feira, 19 de junho de 2007

Quarenta e tal anos

resquício de medo numa cidade distante há uma geração

ponto a debater-se nas águas fundas da memória sem saber nadar

ilusão de corpo a mergulhar em sonhos para o resgatar

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Marcha egípcia



Vi cantar o rouxinol
num ramo do meio-dia,
brincava um raio de sol
no som e depois fugia.

Meu amor, quando voltares,
numa gruta assaz sombria,
acharás, se os procurares,
o raio e a melodia.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Manual para a fabricação de foguetes



Estrelinhas de pólvora a brilhar.

É antes da festa que se fabricam
os foguetes.

Nos canaviais, eh, nos canaviais.

Nas margens dos rios
que correm para o mar.
(dos pequenos ribeiros,
ou mesmo de lágrimas,
das pequenas marés).

É então que, cuidadosamente, se coloca
o explosivo

Nos dias banais, plim, nos dias banais.

Nas margens dos dias banais,
aquelas onde germinam as
pequenas histórias, ocultas
na folhagem húmida.

E se mistura o arco-íris de
sódio, potássio, alumínio e ferro.

Amarelo, azul, branco e dourado, oh!

Vermelho é o cálcio
o estrôncio também
o verde é o bário
(aqui convém ler a enciclopédia).

Porque a festa há-de chegar,
de olhos pasmos na alquimia da noite.

sábado, 2 de junho de 2007

Nuvens sobre o atlas: vai chover



Dir-se-ia uma voz pregando no
deserto. Mas era apenas um caçador
de mariposas (vulgo, borboletas),
assobiando na brisa das histórias
por inventar: - Brisa, brasa, na branca
ideia de calor há uma montanha
e muito lá no longe azul.

Falou. E o eco disparava
em busca da nascente, parando
em cada pedra, um pouco circulando
na ideia um pouco aérea de por ali
pousar, ou de ficar olhando
o verde mar das vinhas. Devagar.

- Tal qual uma cidade onde possam
ir ter as rotas dos cometas mais
banais, a cauda nas esquinas
dos cafés. E o eco disparava sobre
as máquinas solares, batendo nas
soleiras, seguindo a trabalhar numa
amável manhã ou por aí. Em bancos
e bandos de pardais. A acordar.

Era então a estação dos gafanhotos
(no deserto, quer dizer) que lá iam
seguindo atentamente a história
interminável dos pardais.
Não eram mariposas? Se calhar.

domingo, 20 de maio de 2007

Retrato

No jardim do paraíso a calma tem
o vago brilho azul da madrepérola,
o vento tem reflexos de cascatas
densas, verdes como as águas altas

e tem aromas de baunilha e flores
de mel. O silêncio é um pássaro,
um coração de um pássaro pulsando,
e tem recantos do ainda e agora,

cantando, como tu, na tarde calma,
por uma pauta de sol. No jardim
do paraíso a noite é de veludo

e tem a graça obscura das fogeiras
antigas ardendo devagar. E tem olhos
ainda mais antigos, ou lagos de avelã.

sábado, 12 de maio de 2007

Arte poética, com sardinheiras

Abro o mapa de Lisboa e o que vejo
é um pequeno e aéreo coração radial.
Um leque sobre o tejo, é o que vejo
semi-aberto ao abrigo do oceano,
vendo passar, deitado, ideias de
navios
, no vento brando de quem teve
mais para ver. Aproximando, é uma manta
de telhados, com praças e tapetes
de árvores entre, e ruas com pássaros
azuis
. À margem do mapa, na varanda
os meus gerânios florescem outra vez.

sábado, 14 de abril de 2007

Retrato de família com armário e pintura chinesa contemporânea

(Cay Yi Lin, 2005)

Nos tempos da revolução tive uma blusa
caqui bordada a ponto aberto. Cintada e

justa, ao fim de dois ou três anos de intenso
uso não me servia. Mas pendurada ficou

por muito tempo ainda no armário,
antes que a contragosto me decidisse

a dar por findo o gosto que nela tinha.
Que não era alegórica prova-o o facto

de me ocorrer, de quando em vez, pensar
por alto: “onde estará o verão de antanho?

Em que lugar o teu olhar
me perseguia?

Em que gaveta guardo o silêncio
que me despia?”

E analiso longamente o meu armário.

Se eu dissesse que sou filha da revolução
a minha mãe não iria gostar.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Mergulho



Tout d'un coup j'ai eu la révélation des fééries de mon étang.
Claude Monet


Disse-me uma rã, do muro do tanque:
“O meu estar aqui é um hino ao sol.
Canto pela comunidade, o pequeno povo
espalhado à superfície da água, os de mil
olhos por entre os limos. Onde mergulharei,
é mais que certo, no momento em que
cruzares a fronteira do meu próprio estar.”
Um passo e mergulhou na multidão aquática.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Democracia



As vantagens da democracia são
assaz evidentes nas Berlengas.
A liberdade de expressão é aí perfeita,
muito embora a conversa das gaivotas
possa parecer um pouco frívola e gutural.
Mas liberalmente mergulham sem entraves
na liberdade similar dos carapaus.
Melhor só mesmo o caso das Desertas,
onde os lobos-marinhos são poetas
na república do oceano a meditar.

quinta-feira, 22 de março de 2007

O inventário


Disciplinado e atento como sempre, um jovem
duende procedia à meticulosa tarefa de
inventariar os pessegueiros. Dispunha para tal
de um formulário, com vinte e cinco alíneas,
cada uma a preencher expressamente
e na língua dos nativos e na língua dos duendes.

Nelas constavam: a cor, o nome, a espécie, a sombra
(amena, ou frondosa, ou rendilhada, ou) a música
das folhas, o movimento, o lugar, o estado, a origem
das raízes e do tronco, o das flores e dos botões (quando
aplicável), juntamente com a fauna, humana ou
animal, que, fugaz ou permanente, o frequentava.

Nas outras doze alíneas deveria,
por ordem decrescente, descrever
os doze melhores ramos
(anexando um breve esquisso ou aguarela).

Num país de pomares e de colinas
a tarefa prometia a eternidade. Mas eterna
era a paciência do duende, pelo que,
cinco mil cento e quinze pessegueiros
constavam já, perfilados, do inventário.
Parou, pois, o jovem duende, por momentos,
na sombra de um pinheiro ao pé da estrada.

[… aqui se indica o breve sono do duende]

Esta história não tem, eventualmente, um fim
visível. E quer o duende acorde ou quer floresça.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Março, 21

A Primavera pode chegar nas páginas
de um livro – entre sons e rimas, cantando
no emaranhado das folhas, que vão
a pouco e pouco cobrindo o claro manto
da neve que se foi. Pode chegar, é certo,
na capa colorida de um livro de poemas
– mas convém, de qualquer forma, olhar
de vez em quando para a beira da janela
(e ver, possivelmente, cair o céu da tarde
em voo transversal sobre os beirais).

quarta-feira, 14 de março de 2007

Bucólicas (II)

E de súbito, ouve-se tocar um tambor.
À beira do regato, uma nereide extraviada
mergulha no orvalho e saúda a manhã.
País de colinas mansas, quem te esquecerá?

quinta-feira, 8 de março de 2007

Pomar

Este é um poema em forma de trapézio:
os seus lados paralelos desenham uma
geometria de laranjais, obliquamente
atravessada pelos passos de quem passa,
duas linhas de terra, abrindo um chão de ervas
altas e molhadas. No interior, tangente (ou quase)
à linha mais à esquerda, um círculo assinala
a dimensão da queda, num poço com escada
em caracol. Ploc, faz uma pedra no espelho
da água onde a ninfa vem nadar.
A área do trapézio é calculada pelo tempo
que atravessa o laranjal: varia com a chuva,
ou com a memória isósceles de alguns dias
escalenos, na matemática subtil dos ângulos
de alguns versos, com vista para laranjas e pardais.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Caderno

Este é um poema a régua e compasso:
desenha a esquadria de mundos coloridos,
berlindes, caricas, balões a voar.

No céu da infância as nuvens são brinquedos.

A esquadria está repleta de números
espreitando atrás das grades, em fuga acelerada
para o jardim. Bandas de números num coreto
vermelho e um chapéu de chuva azul.

No jardim da infância a chuva é um brinquedo.

No interior das linhas, as letras equilibram-se
num trapézio. Num baloiço de cores. Seguindo
um carreiro de formigas, no balanço.

Nas linhas da infância as formigas são brinquedos.

Devagar aparece um caracol.
O sol da infância é um brinquedo alto.
Aberto e acessível, como um girassol.

Os telhados da infância são brinquedos.
Na esquadria, as casas desabam lentamente,
e sem cair, adormecem a cantar.

domingo, 4 de março de 2007

Blossom


Vejo-te passar, numa nuvem,
e só posso saudar quem vai de viagem.
No interior da noite mais antiga, a que se
abre agora em milhares de estrelas,
inesperadas e quietas, talvez. Deste lado
do dia, a chuva de Março apaga a pouco
e pouco o rasto dos que partem, com
alguns livros na bagagem e a memória
fugaz das flores de cerejeira, por bússola,
talvez. Farewell, amigo, a vida nunca
chega para os livros que há para ler.

quinta-feira, 1 de março de 2007

A passagem das horas

Encostada à amurada da ponte, de costas
para o rio, sorri para a fotografia. Há pouco
a dizer de um enquadramento assim, que
se entende querer servir apenas de horizonte
de viagem, umas férias, talvez, nada de
particularmente artístico ou trabalhado.
E no entanto, com estranha pertinácia,
o sol põe-se todos os dias na fotografia.
Quer dizer, no céu (matinal?) as cores claras
e fixas vão acompanhando as horas, numa
metamorfose subtil que gradualmente pinta
de rosado o canto superior esquerdo da
fotografia. Na combustão da tarde, o próprio rio
ganha matizes insuspeitos; e no fim do dia
a água é já claramente um espelho opaco
em nítido movimento rumo à linha de fuga,
à direita, na fotografia. Só a personagem
permanece imóvel, de costas na amurada,
muito embora uma sombra se insinue ténue,
esbatendo as linhas do casaco azul.

(Em Berlim, Setembro de 2005, sobre o rio Spree)

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Bucólicas (I)

Raisa: o trabalho é por vezes uma floresta
de pinheiros altos. No silêncio, o ar vibra
com o cheiro da resina. Por vezes, Raisa,
numa sombra mansa, vendo a poeira
assentar, exacta, no caminho.

sábado, 3 de fevereiro de 2007

Neve



Eis os deuses do Norte: Odin,
Thor e Freyr, tal como aparecem
numa antiga tapeçaria do século doze.
Quem fez o desenho entendeu que
as leis da perspectiva conduziam
necessariamente aos pequenos
animais selvagens passeando na
base da gravura. Imagino-o no meio
do Inverno, atentamente desenhando
as barras dos vestidos, em busca
de uma simetria ao mesmo tempo
irregular e harmónica, que mãos
femininas se encarregarão um pouco
mais tarde de tecer, enquanto
na lareira arde um fogo de madeira
de pinheiro, e a tarde declina
sobre os barcos ancorados
na baía. Hej! No calcanhar
dos deuses, sobre fundo de neve.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Itinerários urbanos em catorze versos

Da janela, a muralha fernandina
vai-se alargando em círculos de cor:
o Barreiro, Alcochete, Pinhal Novo
o próprio Tejo incluído. Em redor

passam memórias de faluas,
memórias de palavras, os batéis
na circular interna de Odivelas
extensíveis à paragem do Cacém.

Espraia-se no ar, como um aroma
de alecrim e rosas, a noção
de sermos muito mais que viajantes

de um dia sem história. Ou talvez
haja uma história secreta em cada dia
que apenas, por acaso, não se vê.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Mosaico


No centro do labirinto, vejo passar
o satélite. Procura, como eu, as coordenadas
do lugar. Discretamente saúdo o viajante
circular da noite. Também eu um dia
encontrarei o caminho ente as linhas
geométricas que me rodeiam. Nesse dia
subirei ao vértice do triângulo.

domingo, 21 de janeiro de 2007

Arte poética



Vem ouvir cantar a cotovia nos ramos
do pinheiro.
Sobre fundo azul, pousa na página
um pequeno pássaro de papel.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Password

Se por acaso um dia conversarmos
sob os plátanos, vendo as crianças
correr na terra batida da infância,
o que te direi terá a cor vermelha
da bicicleta e a ordem um pouco
oblíqua do carreiro das formigas.
Nada disto lá estará. Só a memória
de uma sombra antiga adensará
a sombra que te acolhe sob esses
mesmos plátanos do mesmo exacto
largo. E a porta, que era verde,
abrir-se-á de novo, agora como dantes,
porque o que muda é só o sinal
e a senha que nos cabe escolher.
A palavra de passagem é agora a minha.

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

As sete pragas do egipto

Leve é a idade das abelhas. Mais
leve ainda é a corrida dos mosquitos
ou tranquilo deslizar dos caracóis.
Os gafanhotos levemente ganham asas
ou levemente pulam. Como as rãs.
A idade milenar dos escaravelhos
pesa tanto quanto a brisa matinal.
E mesmo as pulgas, os pulgões e as
borboletas se elevam leves nas
lavouras, nas levadas, e aereamente
entoam a canção do criador.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Perspectiva

Balões
janelas caiadas
varandas
balcões
e ao fundo, até perder de vista,
as copas rendilhadas das amendoeiras.

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